No Dentista

Consulta marcada no dentista, depois do almoço. Obturação, fio dental, escova, etc. Calor de janeiro, férias de crianças, consultório quase vazio. A televisão vertendo sangue e esperma pelas paredes da recepção. Meia hora de atraso, o Magarefe diplomado chama meu nome. Custo a ouvir, pois a rainha de todas as salas fala muito mais alto. Dou-me conta de que fiquei velho. O dentista é um rapazote, franzino, baixinho, mas com nome pomposo, que prefero esquecer. 

Não vejo sua boca, que já está mascarada. De poucas falas, vai direto ao assunto e começa as “carícias”. Deitado praticamente de ponta a cabeça naquela cadeira desconfortável, nada posso fazer a não ser filosofar sobre o tempo e o sofrimento. Filosofar sozinho, quase alijado de mim mesmo, já que a cada 30 segundos quase saio do corpo com as cutucadas sutis no meu nervo dental aparentemente exposto. 

E sobre o que poderia meditar? No início começo a antecipar o café que tomaria no fim da tarde. As notícias desastrosas do dia. Minha vida insípida. Então, entre uma fisgada dolorosa e outra, percebo que o tempo vai passando e eu já não sinto a minha cabeça, a não ser como um fonte de imensa e irritante pressão, apertando a cadeira. Aquilo era realmente enervante! E o Torquemada de jaleco não me dá folga nem descanso. Nem uma vez me deixa cuspir. Não havia sangue - claro, era uma obturação. Presa assim de uma tortura autoimposta, pressionado pela sensação “ética” daquilo: “poderia virar um canal”, “poderia ser uma extração”, “é melhor que demore hoje… assim não voltarei outro dia”; tento manter o pensamento fixo no tema apesar das contrações. Após uma delas ele fala: “se você sentir algum incômodo, por menor que seja, levante a mão, e eu aplico uma anestesia.” Qual parte eu não entendo?! O pesoço vai começando a endurecer pelo muito tempo na mesma posição. Um fisgada das boas!! Mas eu não levanto a mão. Como posso, elas estão cravadas nos braços da cadeira, e pesadas pelo desuso. Isto é uma tortura legalizada! 

De repente, perco a noção do tempo! Noto que ele não passa e ao mesmo tempo voa. Há meios de me situar? Sim. Os trovões ao longe. O vento quente que entra pela janela anunciando a chuva de verão da tarde. Acontecimentos que se sucedem, criando uma ideia bem material de tempo. 

E eu vejo o tempo passando, mas aquele microterror que a intervalos mais ou menos regulares me ataca, pelas mãos inábeis daquele verdugo remunerado, faz-me pensar que tanto o prazer quanto a dor relativizam o tempo. Não é só o prazer que é fugaz assim como a dor é delongada; o prazer também pode ser espichado e sorrateiramente tornar-se uma fonte de sofrimento! Refém desta situação restritiva não percebo mais o tempo como usualmente percebia. Por qual unidade posso “medi-lo”?! Por pontadas que me causam violentas contrações involuntárias!? São irregulares e fortuitas, não servem como unidades mensuráveis ou apreensíveis. Não sei quanto tempo se passa. Só o incômodo crescente e as dores intervaladas emolduram aquele quadro insólito e assaz vulgar. Um dentista e seu paciente.

Termina. Três horas depois, retomo posse completa do meu corpo combalido. Meu companheiro indesejável daquela tarde, condescende e sugere que eu não me levante rápido, já que fiquei imóvel por tanto tempo. 

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